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domingo, 22 de agosto de 2010

Senhor das Moscas - ou, a arte tribal das crianças da realidade suficiente.

Comecemos este comentário com a belíssima mensagem de Raoul Vaneigem, para nós adultos/as: "Tudo aquilo que pode ser destruído deve ser destruído para que as crianças possam ser salvas da escravidão". Ahá! Que deliciosa tarefa. Imaginem só! Deixar como herança um mundo de prazeres, totalmente sem tédio. Deixarmos como herança algo além do realismo conformista. Se achas penosa tal tarefa ou se achas arriscado demais! Então pensemos na hipótese de que tal empreitada seja realizada pelas próprias crianças. Pensemos na hipótese de que as crianças é que devem experimentar tal delícia. Sem nenhuma mediação! O que restaría para nós? Adultos/as absoletos/as? Eis o experimento de pensamento que nos convida às mais belas idéias perigosas: Senhor das Moscas (Lord of the Flies, 1963, Peter Brook).

O título já incomoda: "Senhor das Moscas", tradução do nome hebraico Ba'al Zebud. Sim, ele mesmo! O sinônimo do diabo: Belzebu! O filme é uma cinematização do homônimo clássico da literatura inglesa pós-guerra. A idéia central de ambos livro e filme é, nas palavras da Wikpédia: "a regressão à selvageria de um grupo de crianças inglesas de um colégio interno, presos em uma ilha deserta sem a supervisão de adultos, após a queda do aviaão que as transportava para longe da guerra". Claro que esta descrição é uma visão muito pobre. Pois é muito difícil se admitir que a realidade se constitua para além de qualquer princípio exterior criado e endereçado à fundá-la, explicá-la e claro, à justificá-la. Daremos um passo ao lado e numa esquiva contra esse olhar miserável arrisquemos uma visão mais rica, exuberante e, portanto, perigosa: Senhor das Moscas é a beleza crua da indiferença necessária pela esperança e a certeza do nada constituinte da realidade. Desse modo o real inteiro celebra! Já que seu princípio é desprovido de qualquer supra-realidade. Basta a si mesmo, enquanto dor, desamparo, tragédia, insignificância, efemeridade, caráter único, crueza. Esta última, "crudus", cru, não digerido, indigesto. No entanto, sem tautologias abusivas como: "verdade verdadeira" ou "realidade real". Sim, um protesto, como dizia Cioran, contra A Verdade. Ou como dizia Nietzsche que a necessidade de uma fé forte é sim o seu próprio contrário.
Aos olhares empobrecidos é desagradável perceber que a recém tribo formada pelas crianças não tem nenhum gosto pela certeza, portanto, não tem nenhum gosto pela servidão. São incapazes de se deixarem confiar em depositários da verdade. São incapazes de trocar suas liberdades pela ilusão de que existe alguém que pensa por elas. Agem diretamente sem procuração. Crepúsculo dos símbolos. O êxtase é garantido por qualquer que seja a brincadeira selvagem. Toda brincadeira é artifício. Não possui objeto concreto. São paixões cujo centro está vazio. São lascidões banais. Desmistificações da crença, do direito e do futuro. A civilização é fantasia perdida. É preciso seguir em frente. É preciso restabelecer a sensualidade primordial e estéreo. É preciso deixar para trás o ilusionismo que vincula um sujeito incerto a um objeto indeterminado. É preciso uma arte em que a realidade seja suficiente. É preciso um artifício que se veja enquanto tal, para somente aí, o natural celebrar-se, em volta da fogueira, toda a sua natureza. É preciso um monstro! Em seu significado primordial: aquele que mostra. Caprichoso e mutável. Mostrador de que, qualquer que seja aquilo que se ocupe enquanto objeto de crença, nada mais é do que uma provisória compensação da incapacidade fundamental de crer. O monstro é aquele que mostra a condição humana mais crua e infernal:  o eterno saltitar de um objeto de crença a outro, no qual todo crédulo está condenado por sua fundamental incapacidade de crer verdadeiramente. Eis a arte tribal das crianças da realidade suficiente.

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