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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Queimada - ou Brincando com fogo


Queimada (1969 - Itália/França) de Gillo Pontecorvo. Um filme força. Potência inebriante. Inspirador. Filme que faz tudo o que é vivo em meu corpo se rebelar contra a tirania do conforto. Mas se retiro toda a sua força ele se resume no seguinte: Século XIX. Uma ilha do Caribe sob domínio português. É enviado para lá um representante da coroa britânica. Sua missão: incentivar uma revolta e promover a indenpendência da ilha chamada Queimada. Esta é assim nomeada pois os português atearam fogo nela para conter uma insurgência indígena. No entanto, dez anos depois, o representante inglês retornar à Queimada. Desta vez, não como representante da coroa inglesa, mas sim como mercenário contratado pela Companhia Açucareira. Nova missão: desfazer as consequências da missão anterior. Pois o momento econômico exige um novo ordenamento político.

Agora, restituindo a força do filme, dá-se o seguinte:

Queimada nos coloca uma belíssima reviravolta de pensamento: não tem sentido falarmos em história da civilização, e sim tem sentido falarmos em geografia da civilização. O pensar histórico fez com que o tempo deixasse de ser uma dimensão do vivido e o tornasse um modo de ordenar manifestações culturais em hierarquia. Queimada é anti pensamento histórico. O filme propõe a ruptura com a pretensa hierarquia nítida do tempo; com a pretensão do pensamento histórico ser algo universal, irreversível e último. O filme de Pontecorvo propõe uma importantíssima e inédita revolução: articular o sentido da vida humana com o sentido espacial (geográfico) da vivência. Os portugueses importaram para a ilha identidade cultural (cristã) e memória de modelos ("progresso" ocidental). O intuito dessa importação significava a continuidade histórica da civilização. Continuidade imposta a ferro e fogo. Queimaram toda a ilha em nome dela: a civilização. No entanto, mal sabiam que, com isso, estavam mesmo era brincando com fogo. Mal sabiam que, aqueles que foram levados à força, os/as escravos/as negros/as, e que lá chegaram de mãos vazias (sem "civilização" e tecnologia), chegaram com a potência de um novo modo de pensar tão radical que se tornaria incompreensível para qualquer civilizado ou pretenso civilizado: o pensar concreto e espacial de uma verdadeira cultura por construir. Apesar da miséria material na qual os/as africanos/as desterrados/as foram aí lançados/as, seus gestos cotidianos se mostraram o que eles e elas tinham de mais rico e sofisticado: jogo, festa e revolta.

O representante da coroa britânica, importador de progresso, chegou em Queimada trazendo em suas malas fases esgotadas da cultura ocidental como se fossem esperanças para um futuro promissor. Repetição do esgotamento vinda de navio (tempo da distância) e impressa em papel (tempo da comunicação como um olhar distante em direção a Europa; como um espiar do modelo a ser copiado). No entanto, o futuro promissor trago pelo inglês foi ocupado territorialmente por Jose Dolores (convidado que se tornou anfitrião). Tornou-se futuro imprevisível pois tornou-se geografia promissora. Deixou de ser mero tempo - espaço da utopia. Tornou-se lugar. Atitude de violento insulto. Jose Dolores ocupou o tempo, como se fosse um espaço; com isso trocou seu ritmo europeu histórico por um ritmo africano que o suspende das trilhas da história. A revolução de ex-escravos/as em Queimada troca a técnica civilizada européia pela arte africana além da civilização. Troca o simbolismo "universalmente" convencionado por pensamentos concretos mais vivos. Provoca a descoberta de si enquanto pensador e agente próprios - são guerreiros dançarinos por um marco zero. Troca a restrição às verdades humanísticas pelo grande acordar - despertam do alheiamento. Não há mais sonho dogmático - cuja duração segue às custas da pena de morte. A guerrilha procura, apenas, assumir-se autentica e honestamente para si e para o seu ambiente. No entanto, enquanto a revolta se levanta rumo a uma nova situação, há uma pseudocultura nascendo: a república. Situação tragicômica de seus participantes. Pois a tragédia pertence apenas a Jose Dolores. 

Tragicomédia pois são escolhidos alguns dos "piores" elementos de cultura para transformarem a cultura mesma. São escolhidos imitadores, sempre decadentes temporalmente, para manifestarem por si espíritos alheios: imitação defasada da Europa. Resultado: incompetência. A república nasciente de Queimada, filha da civilização é incompetente. Pois é uma debandada desesperada da realidade concreta e próxima que lhe é insuportável: os/as escravos tornaram-se senhores/as de si, do ambiente, do futuro enquanto presente e da cultura bela a ser cultivada. Tal pseudocultura-tragicômica é logo deposta por uma junta militar aliada ao capital estrangeiro. Pois foi incapaz enquanto filha de amar sua mãe: "é para o seu próprio bem". Portanto, horizonte fechado, mas ocupado por outra filha decadente a Ditadura Militar. Mas o ritmo africano é incompreensível para ambas decadência. Ele insiste e não se cala. É horizonte aberto. É carnaval revolucionário ou revolução carnavalesca em seu sentido mais superior, algo tão refinado que também é incompreensível a qualquer esquerda festiva. Pois o ritmo que toma conta de Queimada é esperança utópica para além da história, para além das condições materiais - sem cair em nenhum tipo de "euforia" religiosa além-mundo. É esperança inesperada, ou seja, é esperança cuja única função é desaparecer. 

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