Lilian M. - ou Liberdade: só a Libertinagem vos Libertará
Lilian M: Relatório Confidencial, filme brasileiríssimo, pois nele não há as defasagens intelectuais que se costuma importar da Europa e dos EUA. É uma inovadora "tragicomédia de aventura" de 1974, dirigida pelo herói marginal Carlos Reichenbach, cujo roteiro e fotografia também estiveram sob seus cuidados. Obra de arte que ainda hoje não encontrou sua devida reverberação. Talvez por ainda continuar sem encontrar seu devido público, pois não é a romantização de nada, muito menos a condenação moral de algo. É um filme libertário que se liberta de si mesmo. No entanto Lilian M., a personagem, é um modelo fantástico e, portanto, mítico da singularidade do agir que dessacraliza o pensar. Lilian M. coloca a liberdade de pensamento em seu justo lugar: a liberdade do corpo. O pressuposto de qualquer pensamento é a própria pele. O pensar nada mais é do que pura diversão e capricho amoroso. Nada de se entregar à razão para cumprir o sacro dever de sacrificar aquilo que mais se ama: a arbitrariedade descarada da aceitação de que sou apenas o eu próprio. Não há pressupostos. Lilian M. apenas se põe. É posta. Ah, mas antes de continuarmos essa idéia mítica dessacralizada bisbilhotemos a sinopse do filme.
"Maria abandona o marido lavrador e os dois filhos pequenos. Foge com um mascate falador. Após um acidente de carro, segue sozinha para São Paulo. Imigrante perdida é presa e encaminhada a uma assistente social. Esta arruma-lhe um emprego na casa de Braga, um industrial filósofo. Tornam-se amantes. Maria é rebatizada de Lilian (nome da mãe de Braga). Isto é só o começo. Ao longo de sua trajetória Lilian se envolve com todo o tipo de personalidades singulares: o filho de Braga (artista autodestrutivo), um industrial alemão (financiador da repressão militar), um grileiro de terras narcisista, um detetive infantil, uma dançarina e cafetina, um marginal tuberculoso com cara Jesus Cristo e, por fim, um funcionário público submisso e sem ambições e sua irmã, aparentemente apática. A trajetória de Lilian M., da roça à metrópole, do casamento à prostituição, da estabilidade financeira à marginalidade instável, retorna, como na música se retorna a um ritornelo, às origens: mulher humilde casada e mãe de duas crianças pequenas. Mas como eu disse: ritornelo!"
Lilian M. é ao mesmo tempo criador e criatura. É dissolução que só interessa a ela mesma. Dissolução da imensa noite do pensar e da fé. Abandona o reconhecimento de que qualquer coisa está acima dela. Não tem vocação alguma, não está atrás de nenhuma, nem mesmo a de ser alguém livre. Pois, qual a medida de sua liberdade? Já que não sente nenhuma limitação que a possa afligir. É causa de si mesma. Não é causa de nada, de que alguém espere que ela trabalhe, se sacrifique ou se entusiasme. Nenhuma causa é superior senão ela mesma. Lilian M. é um nada grávido de tudo. Nela não há espaços vazios. Não há nenhum sentimento de vacuidade. Não se esconde por detrás de coisa alguma. Está acima de tudo, porém isso não significa que ela é superior. Lilian M. simplesmente é. Não está reduzida ao seu espírito, é mais que isso. Não está reduzida ao seu corpo, é mais que isso. Não está reduzida a seu egoísmo, é mais que isso. Ela não se prende, não se descobre, não está amedrontada pelas coisas do mundo e, muito menos tem planos de salvação ou melhoramento da sociedade. É a insurreição aqui e agora sem deixar brechas para niilismo algum. Não lhe cabe qualquer tipo de resignação hipócrita ou mesmo aceitação hipócrita. Aquilo que assombra cada pessoa que assiste ao filme nada tem efeito sobre sua protagonista: o amor, o bem, a verdade, etc. Lilian M. nada tem de vítima da renúncia de si mesma. É quebra da tirania do espírito através de sua carne e ossos. "Liberdade de espírito" seria a pior injúria que alguém poderia cometer contra ela.
A liberdade não lhe é um sentimento imposto, não lhe é estranho e não lhe é sagrada. Não lhe é um sentimento desperto por outrem. Não vem de fora, nem de dentro. É permeação completa. A liberdade só pode ser toda a liberdade. Uma parte da liberdade (como amam dizer por aí "liberdade, mas sem libertinagem") não é a liberdade. De que coisa você quer se libertar? De que serve uma liberdade que não lhe dá nada? De que serve ser livre apenas de partes e do todo? De que serve uma liberdade que estabelece uma nova dominação? De que serve uma liberdade ordenada pelo sentimento moral, pela consciência, pelo sentido do dever, ou mesmo pelo "o que as pessoas pensarão"? De que serve uma liberdade na qual nos assustamos com a nossa própria nudez e naturalidade? De que serve uma liberdade fundamentada no desprezo de si e na veneração de idéias? Para melhor entendermos essa dimensão libertária de Lilian M. que liberta até mesmo a liberdade, voltemos ao tempo dos dez anos passados após realização do filme: o fim da ditadura militar brasileira em 1984. A abertura política triunfou, no entanto, em seu triunfo, destruiu aquilo que pretendia realizar, a liberdade. Pois, ao invés de agir liberta de qualquer tipo de tutela, acharam outros meios de colocar correntes em si mesmos. Civilização falida. Falência que se agrava até os dias de hoje (2010) e continuará indefinidamente enquanto se tratar a liberdade como posse e não como relação. Relacionar-se com a liberdade somente é possível na libertação. É no libertar-se a si mesmo - processo - que a liberdade vai se dando, em partes rumo ao todo liberto. Apenas em um primeiro momento do processo faz-se livre, depois é preciso seguir em frente, assim como Lilian M. o faz: esquecimento, inocência, jogo, afirmação, criação, abertura, possibilidade, início. Ser livre não é a interiorização de lei alguma, é processo de abertura do espaço da liberdade total sem garantias; é processo que não se sustenta sobre nada; é processo não determinado pelo que somos, e sim que se determina pelo que viremos a ser; é processo da novidade, das invenções e das transgressões; é começo absoluto fora do tempo e da história. É o próprio conselho da libertinagem: tornar-se centro e essência da liberdade.
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