Surplus - ou O Arcaismo Revolucionário
Surplus - Terrorized Into Being Consumers (Suécia - 2003) de Erik Gandini. Supérfluo, excedente, superávite - aterrorizados para consumir; aterrorizados até o consumo. Eis o títuto. Genial como a montagem. Na verdade, composição. Johan Söderberg, percusionista foi quem o montou. Filme-documentário-video-clipe-percussão. Falando em linhas grosseiras e gerais, o filme é uma crítica à dois estilos de vida: ao que visa ser modelo do mais elevado modo de ser humano: consumidor (comsumistas são sempre espécie de imperialista, e imperialistas uma espécie de consumista); e ao estilo de vida militarizado (Cuba): alheiamento que articula um sentimento falsamente romântico que torna-se porta-voz de uma solução inautêntica e forçosamente permanente. A voz que insurge contra tais modos de ser no mundo é a de John Zerzan. Responsabilizado pelos progressistas de plantão de ser uma espécie de ghost-maker (fantasma realizador) dos fantásticos distúrbios de rua contra o G8 em 2001. Onde as idéias de John são rotuladas com a estampa de anarco-primitivista. Destas linhas grosseiras e gerais sigamos a linhas mais delicadas e, portanto, deliciosamente perigosas.
Surplus é uma análise dos hábitos e costumes das sociedades européia e estadounidense em contraponto com os hábitos e costumas a sociedade pós-revolucionária cubana. A primeira sociedade, dona de cultura ancestral. A segunda, dona da grande inveja e vingança contra a ancestralidade que deve sempre justificar sua existência perante a primeira. A terceira sociedade, dona de uma ruptura anticolonial via a militarização e a aceitação da escassez como forma de vida. Europa, soberba mãe da filosofia, das artes, da ciência e da história. Estados Unidos, soberba mãe da tecnologia, do pragmatismo, do dinheiro e da guerra contra tudo o que não é europeu. Cuba, soberba mãe insurgente. A crítica pode ser importada às elites econômicas e intelectuais do mundo inteiro. Pois são elas que, virtualmente, participam da cultura européia e usufruem da tecnologia estadounidense. Mesmo que ambas as situações são experimentadas de modo defasado. É aqui que o filme se torna mais interessante para nós, brasileiros/as (pretensa identidade determinada pelo acaso de se ter nascido/a em um território) não participantes dessa pretensa elite. Esta ligada às comunicações globais e à imensa rede de trocas, aberta às mensagens e à comunicação de experiências que incluem o mundo. Pois a crítica de Surplus toca onde nos é experiência diária, na maioria das vezes experiência irrefletida: a miséria existencial e o alheiamento ao nosso estilo de vida único e transvalorador.
Chamarei, somente pedagogicamente, esse estilo de vida 'brasilero', vivido fora das experiências da 'nossa' elite pretensamente global, de Arcaismo Revolucionário. Surplus nos mostra que a idéia de progresso é vivida, ao mesmo tempo, como um espaço de grandes expectativas e de doces sonhos, como também um espaço que provoca insônia povoada de pesadelos, "ser deixado para trás". Essa dupla vivência do progresso somente é possível apenas para a minoria de pessoas não sobrantes do planeta. Possível á apenas aquelas pessoas que constróem suas cidades como trincheiras e bunkers destinadas a separar e a manter distância daqueles que trazem consigo o horror da fome, da escasses e da precariedade da condição humana - correspondência com a primeira vivência do progresso - e também daquelas pessoas que trazem consigo a condição de que podemos muito bem viver das mais variadas formas indiferentes às obsessões causadas pelo progresso - correspondência com a segunda vivência.
Se o discurso de John Zerzan, para a superação desse modelo aterrorizador para o consumo, é por via de um primitivismo revolucionário, é uma reação válida contra a miséria causada pelo excesso de civilização, geograficamente localizada. Um discurso possível apenas nesse lugar chamado EUA, cuja razão de ser é a pretensa superabundância de coisas propiciada pela tecnologia, o pragmatismo e o protestantismo. Zerzan vê esse abundância excessiva como madastra: mãe e inimiga ao mesmo tempo. Enquanto mãe ela nos mostra que podemos fazer qualquer coisa com o menor esforço possível, menos fadiga e menores custos (automação). Entanto inimiga ela nos mostra que é preciso estar definitivamente dentro do sistmema. Contra isso não há alternativa. Apenas nesta aceitação incondicional se está seguro/a, no entanto cviver em segurança não é viver a beatitude da tranqüilidade, e sim viver a maldição do tédio. É ter empregos que odiamos e somos obrigados/as a amá-lo incondicionalmente ao mesmo tempo em que abrimos mão de toda espontaneidade, flexibilidade, capacidade de surpreender-se e de nos colocarmos em possíveis aventuras. Zerzan sugere que a superação é assumir um risco. Risco este que é o de não mais viver obrigado a consumir objetos (e aqui também se inclui o urbanismo) criados para descarregar os exessos de medo. É o risco de que nossos medos não tenha vida própria. E como todos/as sabem que, quem não arrisca não petisca, assim é a mensagem primitivista de Zerzan. Um exemplo do modo como algumas pessoas lá na Europa e EUA aceitaram esse risco foi a onda de destruição de propriedades privadas corporativas.
Ahá! E o discurso de Zerzan não cabe a nós também? Claro... que não! Tirando a destruição da propriedade privada ameaçadora... Não precisamos voltar a algum estágio anterior à revolução industrial. Pois não vivenciamos tal revolução. Não por que nos faltou algo, histórico ou materialmente, e sim porque a recusamos de modo fundamental. Por abundância. Esta gerada pela nossa experiência dialética entre a síntese e mistura. Pois de modo vívido e aberto, nosso cotidiano é a constante recordação de que a qualquer momento os muros podem ser derrubados - somos indígenas, quilombolas e ciganos/as. Pois de modo vívido e aberto, nosso cotidiano é a constante recordação de que a qualquer momento as fronteiras podem ser canceladas - somos refugiados/as e imigrantes provindos/as de todos os cantos da terra. Vivenciamos diariamente os meios os quais aniquilam as misteriosas e incontroláveis forças globalizantes: por exemplo, vivemos o comércio expontâneo, trocamos mercadorias entre iguais. Existimos enquanto classe perigosa por sermos incapazes de integração - por vivermos as múltiplas justiças, religiosidades e línguas indígenas. Existimos enquanto classe perigosa por sermos incapazes de assimilação - por vivermos as múltiplas morais afrodescendentes e o movimentar-se constante cigano. Existimos enquanto classe perigosa por sermos inaptos/as para sermos socialmente reciclados - por vivermos as múltiplas esperanças (o lugar recebe o impacto do/a estrangeiro/a) e aberturas ao novo (o/a estrangeiro/a recebe o impacto do lugar) de imigantes e refugioados/as. Devido a esse perigo somos vistos/as como supérfluos/as, ou seja arcaicos/as, antiprogressista: por querermos aldeias e quilombos demarcadas, ou seja ancestralidade assumida; por queremos certas experiências estrangeiras libertárias. Devido a esse perigo somos vistos/as como excluídos/as de modo permanente, ou seja revolucionário/as que precisam ser impedidos/as de criar problemas e assim mantidos/as à distância da comunidade respeitosa das leis do progresso e da globalização.
Assim, o Arcaismo Revolucionário é a nossa forma natural de crítica e solução à tensão entre as pressões globalizantes e o modo como nossas identidades são debatidas, modeladas e remodeladas. Nem EUA, nem Europa... nem Cuba.
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